Publicado em 1999
O livro é baseado na discussão levantada na Conferências Royer de 1986.
"Esta é uma versão modificada das Conferências Royer que proferi na Universidade da Califórnia, em Berkeley, de 4 a 6 de abril de 1986."
CAPITULO 1 - COMPORTAMENTO ECONÔMICO E SENTIMENTOS MORAIS
DUAS ORIGENS (quanto as origens da economia)
Outra característica surpreendente é o contraste entre o caráter conscientemente “não ético” da economia moderna e sua evolução histórica, em grande medida, como um ramo da ética. Não só o “pai da economia moderna”, Adam Smith, foi professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow (reconhecidamente uma cidade assaz pragmática), mas também o assunto da economia foi por muito tempo considerado de certa forma uma ramificação da ética.
De fato, pode-se dizer que a economia teve duas origens muito diferentes, ambas relacionadas à política, porém relacionadas de modos bem diversos, respectivamente concernentes à “ética”, de um lado, e ao que poderíamos denominar “engenharia”, de outro.
A economia, em última análise, relaciona-se ao estudo da ética e da política, e esse ponto de vista é elaborado na Política de Aristóteles.
Particularmente, cabe observar aqui que nessa abordagem há duas questões cruciais que são especialmente básicas para a economia. Primeiro, temos o problema da motivação humana ligado à questão amplamente ética “Como devemos viver?”. Ressaltar essa ligação não equivale a afirmar que as pessoas sempre agirão de maneira que elas próprias defendem moralmente, mas apenas a reconhecer que as deliberações éticas não podem ser totalmente irrelevantes para o comportamento humano real. Denominarei essa ideia “concepção da motivação relacionada à ética”.
A segunda questão refere-se à avaliação da realização social. Aristóteles relacionou-a à finalidade de alcançar o “bem para o homem”, mas apontou algumas características especialmente agregativas no
exercício: “Ainda que valha a pena atingir esse fim para um homem apenas, é mais admirável e mais divino atingi-lo para uma nação ou para cidades-estados” (Ética a Nicômaco, I.2; ROSS, 1980, p. 2).
Essa “concepção da realização social relacionada à ética” não pode deter a avaliação em algum ponto arbitrário como “satisfazer a eficiência”. A avaliação tem de ser mais inteiramente ética e adotar uma visão mais abrangente do “bem”. Esse é um aspecto de certa importância novamente no contexto da economia moderna, especialmente a moderna economia do bem-estar.
A primeira origem da economia considerada por Sen, esta relacionada À ética e à concepção ética da politica, a segunda origem é chamada por ele de "engenharia"
Quanto a "engenheira" Essa abordagem caracteriza-se por ocupar-se de questões primordialmente logísticas em vez de fins supremos e de questões como o que pode promover o “bem para o homem” ou o “como devemos viver”. Considera que os fins são dados muito diretamente, e o objetivo do exercício é encontrar os meios apropriados de atingi-los. O comportamento humano nessa abordagem baseia-se tipicamente em motivos simples e facilmente caracterizáveis. Essa abordagem “engenheira” da economia proveio de várias direções e inclusive — a propósito — foi desenvolvida por alguns engenheiros de fato, como Leon Walras, economista francês do século XIX que muito contribuiu para resolver numerosos problemas técnicos nas relações econômicas, especialmente aqueles ligados ao funcionamento dos mercados. Muitos foram os pioneiros a auxiliar essa tradição da economia. Até mesmo as contribuições seiscentistas de Sir William Petty, justamente considerado o pioneiro da economia numérica, tiveram claramente um enfoque logístico, não desvinculado de seu interesse pessoal pelas ciências naturais e mecânicas.
Evidentemente, nenhum dos gêneros é puro em sentido algum; é uma questão de equilíbrio das duas abordagens da economia.
Pode-se dizer que a importância da abordagem ética diminuiu substancialmente com a evolução da
economia moderna. A metodologia da chamada “economia positiva” não apenas se esquivou da análise econômica normativa como também teve o efeito de deixar de lado uma variedade de considerações éticas complexas que afetam o comportamento humano real e que, do ponto de vista dos economistas que estudam esse comportamento, são primordialmente fatos e não juízos normativos. Examinando as proporções das ênfases nas publicações da economia moderna, é difícil não notar a aversão às análises normativas profundas e o descaso pela influência das considerações éticas sobre a caracterização do comportamento humano real.
REALIZAÇÕES E PONTO FRACO
Eu diria que a natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre economia e ética. Procurarei analisar
a natureza dessa perda e o desafio que ela apresenta.
Não é meu intuito descartar o que foi ou está sendo alcançado, e sim, inquestionavelmente, exigir mais.
Acontece que foi na investigação de complexas interdependências que o raciocínio econômico, influenciado pela abordagem “engenheira”, logrou avanços muito significativos. A esse respeito, a ética pode
ganhar com raciocínios do tipo comumente usados em economia.
COMPORTAMENTO ECONÔMICO E RACIONALIDADE
Supõe-se que os seres humanos se comportam racionalmente e, dada essa pressuposição especial, caracterizar o comportamento racional, nessa abordagem, não difere, em última análise, de descrever o comportamento real.
didáticos, mas o mundo é mais rico. Evidentemente, é possível basear uma crítica da economia moderna na identificação do comportamento real com o comportamento racional, e essas críticas de fato foram expressas com grande veemência.6 Em defesa da hipótese de que o comportamento
real é igual ao comportamento racional, poder-se-ia dizer que, embora isso tenda a conduzir a erros, a alternativa de supor qualquer tipo específico de irracionalidade muito provavelmente conduziria a erros bem mais numerosos.
Primeiro, é possível uma concepção de racionalidade admitir padrões de comportamento alternativos; isso ocorrendo, a suposição do comportamento racional sozinha não seria adequada para definir algum comportamento real “requerido”, mesmo se fossem totalmente especificados os objetivos finais e as restrições. Segundo, a questão de identificar o comportamento real com o comportamento racional (independentemente de como se defina racionalidade de comportamento)
tem de ser distinguida da questão do conteúdo do comportamento racional propriamente dito. As duas questões não são desconexas, mas ainda assim são muito distintas uma da outra. Como já mencionado, na teorização econômica tradicional, essas duas características foram, de fato, frequentemente usadas de maneira complementar. As duas juntas foram usadas para caracterizar a natureza do comportamento real por meio de um duplo processo: (1) identificar o comportamento real com o comportamento racional e (2) especificar a natureza do comportamento racional em termos muito restritos.
RACIONALIDADE COMO CONSISTÊNCIA
Como o comportamento racional é caracterizado na teoria econômica tradicional? É justo dizer que existem dois métodos predominantes de definir racionalidade de comportamento na corrente dominante
da teoria econômica. Um deles consiste em conceber a racionalidade como uma consistência interna de escolha; o outro, em identificar racionalidade com maximização do autointeresse.
é difícil crer que a consistência interna de escolha possa ela própria ser uma condição adequada de racionalidade. Se uma pessoa fizesse exatamente o oposto daquilo que a ajudaria a obter o que ela deseja, e fizesse isso com impecável consistência interna (sempre escolhendo exatamente o oposto daquilo que aumentaria a ocorrência das coisas que ela deseja e valoriza), essa pessoa não poderia ser considerada racional, mesmo se essa consistência obstinada inspirasse algum tipo de admiração pasma no observador. A escolha racional tem de exigir algo
pelo menos com respeito à correspondência entre o que se tenta obter e como se busca obtê-lo. Igualmente se poderia questionar que o comportamento racional deve, inter alia, requerer certa consistência, embora essa questão seja muito mais complexa do que frequentemente se afirma (como procurarei mostrar no terceiro capítulo). Mas a consistência em si mesma não pode ser suficiente para o comportamento racional.
Procurei mostrar em outro trabalho que até mesmo a própria ideia de consistência puramente interna não é convincente, pois o que consideramos coerente em um conjunto de escolhas observadas deve depender da interpretação dessas escolhas e de algumas características externas à escolha propriamente dita (por exemplo, a natureza de nossas preferências, objetivos, valores, motivações). Independentemente de essa concepção “extrema”, que a meu ver é correta,
ser ou não aceita, com certeza é bizarro julgar que a consistência interna — não importa como ela seja definida — poderia em si mesma ser suficiente para garantir a racionalidade de uma pessoa.
Devo acrescentar que a concepção da racionalidade como consistência tem sido, em algumas obras, tornada aparentemente menos implausível graças à atração hipnótica de palavras bem escolhidas. A relação binária que fundamenta a escolha, quando esta apresenta uma consistência desse tipo, às vezes é descrita como a “função de utilidade” da pessoa. É desnecessário dizer que, por essa interpretação, a pessoa maximiza sua “função de utilidade”. Mas isso não acrescenta coisa alguma ao que já sabíamos e, em particular, não está dizendo nada sobre o que essa pessoa está tentando maximizar. Denominar essa relação binária “função de utilidade” da pessoa não nos diz que é sua utilidade em qualquer sentido independentemente
independentemente definido (como felicidade ou satisfação de um desejo) que a pessoa está de fato tentando maximizar.
AUTOINTERESSE E COMPORTAMENTO RACIONAL
Examino agora a segunda abordagem da racionalidade — a da maximização do autointeresse. De fato, ela se fundamenta no requisito de uma correspondência externa entre as escolhas que uma pessoa faz e seu autointeresse.
Considerar qualquer afastamento da maximização do autointeresse uma prova de irracionalidade tem de implicar uma rejeição do papel da ética na real tomada de decisão (que não seja alguma variação ou mais um exemplo daquela exótica concepção moral conhecida como “egoísmo ético”).
De fato, pode ser menos absurdo afirmar que as pessoas sempre de fato maximizam o autointeresse do que afirmar que a racionalidade
deve invariavelmente requerer a maximização do autointeresse.
12 Por exemplo, em suas Conferências Tanner intituladas “Economia ou ética?”, George Stigler (1981) apresentou uma defesa bem articulada da concepção de que “vivemos em um mundo de pessoas razoavelmente bem-informadas que agem de modo inteligente para realizar seus interesses próprios” (p. 190).
As garantias de que a teoria do autointeresse “será a vencedora” têm-se baseado em alguma teorização especial em vez de na verificação empírica.
A verdadeira questão é se existe ou não uma pluralidade de motivações ou se unicamente o autointeresse rege os seres humanos.
A mistura de comportamento egoísta e altruísta é uma das características importantes
da lealdade ao grupo, e essa mistura pode ser observada em uma grande variedade de associações de grupo, de relações de parentesco e comunidades aos sindicatos e grupos de pressão econômica.
ADAM SMITH E O AUTOINTERESSE
Mas o fato de Smith ter observado que transações mutuamente vantajosas são muito comuns não indica em absoluto que ele julgava que o amor-próprio unicamente, ou na verdade a prudência em uma interpretação abrangente, podia ser suficiente para a existência de uma boa sociedade. De fato, ele afirmava exatamente o oposto. Smith não alicerçava a salvação da economia em alguma motivação única.
A interpretação errônea da postura complexa de Smith com respeito à motivação e aos mercados e o descaso por sua análise ética dos sentimentos e do
comportamento refletem bem quanto a economia se distanciou da ética com o desenvolvimento da economia moderna.
De fato, é precisamente o estreitamento, na economia moderna, da ampla visão smithiana dos seres humanos que pode ser apontado como uma das principais deficiências da teoria econômica contemporânea. Esse empobrecimento relaciona-se de perto com o distanciamento entre economia e ética.
Outra consequência grave desse distanciamento é a diminuição do alcance e relevância da própria economia do bem-estar.